sábado, 15 de maio de 2021

A BONDADE NEGRA DE UMA VAGABUNDA / Urariano Mota

Eu me perguntava: será que ela sabia o destino daquele "lanche para mais tarde"?
Hoje, penso que sim, porque conheço o que os patrões dão o nome de "rádio corredor". Ou seja, a comunicação subterrânea,oculta, que os empregados e excluídos tem a margem do controle dos chamados superiores.
14 de maio  de 2021

Para o dia de ontem, 13 de maio, lembro de uma pessoa grande que fiz personagem. Sobre ela, compreendo o que os fascistas chamam de vagabundo, palavra definida nós dicionários como um ser infame, canalha, desonesto, ordinário, inferior. Um insulto atirado, enfim, por bandidos contra a decência, que age por justiça. Em resumo, eu quero apenas dizer Severina, do romance " A mais longa duração da juventude" em uma página:
Penso na cozinheira  da pensão, dona Severina, uma senhora  negra, analfabeta, que lia como ninguém as necessidades dos fodidos. Mais e melhor que a Irene de Manuel Bandeira,"Irene boa,Irene preta,Irene sempre de bom humor", maior foi Severina, porque a sua bondade era ativa. Ela não era aquela bondade da criada perfeita, sempre a serviço dos patrões, que por isso entrará no céu, apesar de negra. Não, sob risco, na conspiração sem palavras  e sem bandeira, muda, quanto devemos a ela ? Severina lia em nossos olhos a angústia, e um sorriso se insinuava em seu rosto, quando nos olhava  com olhos graúdos como se nós dissesse: " Eu te compreendo, futuro, se para a humanidade houver algum, eu te compreendo futuro camarada" . Está lembrança vem na escrita . A gente tem que escrever  para não ser um filho da puta , ou um ingrato, pior que os gatos domésticos. Por quê ? Eu pagava somente a minha vaga e alimentação. Almoçava lá embaixo, mas lá em cima, Luiz do Carmo estava trancado sem comer. Então eu comia  até a metade do meu prato. E ao me levantar  da mesa com os meus 50% deixados, eu falava para me justificar  do modo exótico de comer:
- Levo para o meu lanche, mais tarde.
Severina doce, Severina bondosa, Severina indispensável, sorria com os olhos  para minha desculpa, eu podia ver. A partir do terceiro dia do almoço pela  metade, ela punha mais feijão e mais pedaços  de carne em meu prato, " por engano". Na hora da refeição, a velha dona fiscalizava a quantidade de comida posta para os inquilinos. Severina  atrasava o momento de pôr a minha refeição até que a dona saísse, e quando mais não era possível, escondia o excesso de de carne sob camadas de feijão e arroz. Eu, percebendo  a cumplicidade, comia rápido os meus pedaços, de tal modo que na volta da megera dona o meu prato estivesse equilibrado. Se pudesse fazer mais, Severina nos levaria para a sua casa, nos cobriria com a sua saia para esconder aqueles terroristas sem futuro, a não ser a morte. Que chegaria para todos, é certo, mas não tão cedo. Para mim, agora, a sua cara negra e redonda cresce. Com os olhos graúdos um sorriso bom . Nela poderíamos ter a unidade com o povo tão sonhada, e não  víamos, porque buscavamos o popular  idealizado, macho, de armas engatilhadas como o exército vietcongue. Mas o popular estava no sorriso de Severina. Ela apenas queria ser nossa irmã naquela hora repleta de angústia. Ela apenas nos cobria como uma negra fugida abrigava os seus negros perseguidos. Enquanto nós, os perseguidos delirantes, procurávamos o popular sublevado. O engraçado é  que tão criminoso me sentia pelo furto de comida  sob a vigilância da senhoria, que eu fazia de conta que o almoço vinha a mais por acaso, embora repetido, e Severina fingia que errava a mão,sempre no mesmo prato.
Na verdade, eu era o seu negro preferido, o filho especial da negra Severina, que para os outros era madrasta. Estrela Vésper riscava no céu até nós,e a sua luz era negra, num deserto branco de ossos.
Eu me perguntava : será que ela sabia o destino daquele "lanche para de mais tarde" ? Hoje, penso que sim, porque conheço o que os patrões dão o nome de " rádio corredor". Ou seja,a comunicação subterrânea, oculta, que os empregados  e excluídos têm a  margem do controle dos chamados superiores 
Os conhecidos como subalternos vêem, leem e conhecem a vida, mas  como são tidos  como cegos, surdos e estúpidos , podem melhor observar o que passa despercebidos aos senhores.

Um abraço e  beijo tardios, Severina.

Não vamos afrouxar o garrão, a luta continua.


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